quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

A PANTERA



A PANTERA - ROGEL SAMUEL

 - Vocês querem um avião? – foi perguntando aquele homem sinistro sem olhar para nós, sem levantar a cabeça, e certamente julgando que éramos garimpeiros.

- Sim, respondeu Val. Você tem? – perguntou ela.

- Tenho. No aeroporto você vai encontrar, respondeu ele, um caboclo velho.

Mas ele não nos olhava nos olhos.

- Que homem estranho, disse eu, para Val.

E chegamos naquele lugar que desaparecia entre nuvens, fugidos da selva, da guerra, da morte. Aquilo era uma dúzia de casas em direção ao rio e onde poderíamos comprar tudo que quiséssemos naquela única loja existente, inclusive armas e drogas.

O proprietário não nos olhava de frente e continuava a trabalhar enquanto respondia acostumado com garimpeiros, traficantes, bandidos naquela terra sem lei. Se tivesse olhado veria Val, aquela mulher bonita que era responsável pelas finanças da guerrilha de que eu nada tinha a ver.

- Vamos ver esse avião? – falei para Val.

- Sim, respondeu depois. E nos dirigimos para o que o homem disse ser um aeroporto e que era uma péssima pista de terra onde havia um monomotor velho, um Cessna 172 da década de 50, que alugamos por uma fortuna e que nos deixou na cidade onde compramos um carro, que Val trazia da floresta duas pesadas mochilas de dinheiro, dinheiro vivo, em várias cédulas da guerrilha, e imediatamente partimos para onde membros da sua organização trataram dos papéis de sairmos rapidamente do país, atravessando a fronteira por terra, viajando para Sydney pela Argentina, vôo trans-polar, conexão na Nova Zelândia.

Depois em Sydney, no Sullivans Hotel, Oxford Street 21, em Paddington, livrarias, pubs, excelentes restaurantes asiáticos. Em frente, um clube noturno com música ao vivo. 

Mas logo voamos para Katmandhu, e lá ficamos um tempo para seguir para Paris, Hotel Fondary, na rua do mesmo nome, ao lado do prédio da Annie Guiraud, que nos convidou para um maravilhoso chá que só ela sabia fazer.

Naquela mesma noite saímos em direção à Torre Eiffel, Val elegante, no seu casaco tibetano. Atravessamos o Duplex por baixo do metrô e, ao passar pela Avenida Motte Picquet 52, parei para indicar a galeria “Paris-Manaus”.

No dia seguinte, almoçamos no “Le Roi du Couscous” e nos mudamos para o Hotel Du Petit Louvre, perto, mais conveniente.

 

Foi quando recebi um recado do Brasil, de meu tio Carlos, que eu não via há muitos anos, com o número do seu telefone. Solteiro, vivia num sítio nos arredores do Rio, sozinho.

- Eu gostaria de rever Paris, disse-me ele ao telefone. Combinamos e mandei-lhe a passagem.

Encontrei-o no Aeroporto, alegria intensa, mas o achei envelhecido e doente. No táxi lhe disse: “Não existe mais a Paris do seu tempo. Acabou com a guerra”. E perguntei:

- Quanto tempo você quer ficar aqui?

- Uns seis anos! – respondeu às gargalhadas.

Dias depois, aluguei um pequeno apartamento, ali perto, na rue Violet, para onde nos mudamos. Era sala e quarto que tinha um hall de entrada e a sala dividida por um biombo desbotado. Eu e Val ficamos no pequeno quarto, meu tio na sala que tinha um jogo de sofás velho, que eu cobri com um pano, perto da cozinha e do pequeno e desconfortável banheiro.


 Meu tio me trouxe meus velhos desenhos de modo e, animado por ele, comprei uma máquina de costura usada e passei a cortar e costurar, fiz um sobretudo para ele, que adorou, e uma capa para Val, que não gostou muito. Mas meu tio disse que eu era um gênio da moda, e realmente vinha-me, cada vez mais, o desejo antigo de costurar, arte que aprendi  muito menino, com minha mãe, que era modista e me punha a seus pés para auxiliá-la e assim me manter ocupado perto dela. Costurar, para mim, era brinquedo, eu me divertia com aquilo, e me lembrava de meus antigos dias de glória perto de minha mãe.

- Estamos em Paris, disse-me ele, a capital da moda. Isso que você faz muito bem.

Levado por ele matriculei-me na “Ecole de la Chambre Syndicale de la Couture Parisienne”, onde aprenderia desenho de figurino, coleção pessoal, montagem, acabamento etc.

O curso, mantido em colaboração com agentes do mundo profissional, era pago, mas eu consegui uma bolsa, como era exilado político. Ali eu poderia aprofundar conhecimentos de técnicas de design de vestuário, tradicionais e contemporâneas, abordagem criativa para modelar e desenvolvia habilidades estilísticas através de registros de uma coleção pessoal.

Era tudo o que eu precisava para ficar em Paris como estudante.

Logo vi que tinha muito a aprender e aperfeiçoar na Escola apesar de ser muito bom naquilo que sabia desde menino com minha mãe; tanto que, certo dia, um professor, vendo-me trabalhar na gola de um casaco, me perguntou:

- Com quem você aprendeu a fazer isso?

- Com minha mãe, respondi.

- Quem era ela? Coco Chanel?

De certo modo era verdade. Minha mãe era discípula de Chanel à distância.



Depois, para fixar-me em Paris, dei entrada no pedido de cidadania francesa, já que meu pai era francês.

Ficamos alguns dias em Biarritz, no Hotel Marbella, a pedido de meu tio. Lá ele se lembrava de cada detalhe da cidade e mergulhou no mar gelado. Entramos em lojas, galerias e jardins levados por ele.

Foi ali que eu disse que não regressaria ao Brasil, e pedi que ficasse conosco, mas ele não respondeu. Presumo que não entendia de onde eu tirava dinheiro, nem eu nada lhe contei. Naquele tempo, já tinha conta em alguns bancos europeus, que era o dinheiro de Val, dinheiro da guerrilha, que ia acabar, mas ainda dava para manter-nos por algum tempo, que eu esperava poder trabalhar depois do curso. 

Mas não. Meu tio Carlos voltou para o sítio, e Val e eu continuamos no apartamento da rue Violet.

Logo virei professor-auxiliar de modelos especiais (senhoras baixas, gordas e idosas). Nisso eu era bom. Eram as freguesas de minha mãe.

Mas tudo mudou quando Val começou a dizer que queria voltar para o Brasil e para a luta. A princípio não a levei a sério. Mas ela repetia, e eu comecei a suspeitar que estivesse ficando louca.

Por fim, tomou uma decisão firme de voltar sozinha, e disse que ninguém poderia segurá-la, o que de fato aconteceu: mandei-a para Manaus, onde seus companheiros a esperaram e onde ela simplesmente desapareceu, como um fantasma.



Sem ela caí na mais funda depressão que piorava a cada dia. Continuei o curso e já fazia pequenos trabalhos, além de dar aula na própria escola. Fácil era desenhar e costurar roupas para aquelas modelos altas e magras, difícil era fazer o que eu fazia, para senhoras de meia idade, ou mesmo idosas, gordas, baixas e barrigudas como as freguesas de minha mãe, que eu conseguia que se sentissem elegantes. Conhecia o toque, o truque, o milagre. Era o que eu aprendi e ensinava na escola. Aquelas mulheres representavam minha mãe, representavam Val, representavam a simbologia do que eu perdera e amara muitíssimo. Minha especialidade foi logo reconhecida. Eu não era um novato e a escola distinguia logo os melhores em cada turma e especialidade.

 

 

 

Um dia compreendi que havia algo em Val que eu desconhecia, ela era um animal selvagem, um ser solitário da floresta. Val não falava francês, vivia isolada naquela sociedade européia. Mas em mim algo morreu, virei um fantasma, um judeu errante, apelido que já tivera, e quando as pessoas perguntavam o que eu tinha, logo a resposta era franca: “minha mulher me abandonou”. A dor do abandono a dor da morte. E procurava, em cada vestido, o corpo da Mulher, ou de minha mãe morta, falecida há muito tempo.

Por isso, toquei a vida, sobrevivente solitário. Começava a ganhar alguma coisa como professor-costureiro. Vivia modestamente. Tomava o café de manhã em casa e ia para as aulas. Voltava tarde. Lia até cair de sono. Era meu cotidiano. Mas, apesar do trabalho, vi que o dinheiro era pouco, que tinha de morar num quarto no subúrbio, mas adiava a mudança.  Meu tio faleceu naquela época. Não fui ao seu sepultamento. 



Um acontecimento importante foi quando a diretora da Maison Rivière me procurou perguntando se eu poderia atender uma freguesa sua.

Ali fui apresentado a uma senhora gorda, baixa e mal-humorada, mas poderosa, que tinha rejeitado todos os modelos apresentados anteriormente.

Era Marion Adele, viúva de um magnata oriental, uma espécie de príncipe, ou rei, que necessitava de uma roupa, o que eu desenhei na hora, e que ela gostou, porque era algo que podia vestir com conforto e beleza, com uma capa de seda e lã em dois planos, sem nenhum enfeite, mas deslumbrante. Na realidade desenhei dois vestidos, um mais claro, outro mais escuro, e eram simplesmente notáveis que ela usasse com suas jóias, o que certamente ela deveria de ter.

O detalhe glorioso era a gola alta, uma espécie de cocar indígena franzido na própria fazenda que a levantava, que a fazia maior, mais alta, além do cabelo e do salto do sapato confortável que projetei com a mesma fazenda e apliques da gola.

Ela gostou, comprou na hora por uma fortuna exagerada que cobrei, mas não discutiu o preço, e se foi.

A equipe de costureiras em alvoroço começou a preparar as fazendas e a cortar, sob minha supervisão.

O milagre da obra eram aquelas costureiras e bordadeiras.

Quando ela veio experimentar, ficou feliz e me disse que era magnífica e logo me encomendou outras roupas e foi assim que eu me tornei estilista daquela senhora e de suas amigas, que me davam trabalho e me pagavam regiamente.

Dormia e sonhava com aquelas diversas roupas, luxuosas, com aquelas mães poderosas que se pareciam com a Rainha Vitória, a mais indígena das rainhas.

Pouco depois passei a desenhar também  jóias que deveriam ser usadas com meus vestidos, cocares de ouro e diamantes, penduricalhos espetaculares, chocalhos reluzentes.

Depois recebi um convite para visitar um príncipe árabe que queria que eu vestisse sua mulher.

- Eu lhe disse que ia pensar... - ele dobrou o preço.

- Mas o senhor vai permitir que eu a veja e toque na sua esposa?

- Com a minha presença...

E acrescentou:

- Você não vai vê-la por muito tempo, e eu quero um vestido excepcional para ela.

 Depois descobri que era filho de Madame Adele.

Ao atender Madame Adele, que não parava de me encomendar novas roupas, soube que ele gostou.

- Meu filho adorou seu trabalho, me disse ela em segredo, sussurrando no meu ouvido. E me deu um Cartier de presente.

E eu me ri, pensando no que representava aquela profissão que estava tomando um rumo inesperado graças à sugestão de meu tio Carlos.

Depois disso, outros árabes me encomendaram roupas para esposas e concubinas. Principalmente concubinas.

Em todas eu acoplava um véu ou uma capa que podia ser usada para cobrir o rosto. E descobri uma coisa – quanto mais luxuosos e caros os vestidos, mais eles gostavam.

Então eu ia criando roupas bordadas sobre sedas raras, com pássaros e flores exóticos e até um largo bracelete de ametistas e brilhantes que ficou famoso pela beleza e pelo preço.

 

 Depois nas “férias” parti para Katmandhu – porque férias eram meses de verão em que não recebíamos nenhum pedido novo.

Lá subi para Pullahari, onde pretendia fazer um retiro. O Khenpo meu amigo que me atendeu, que eu já conhecia, me recomendou um retiro de silencio de 21 dias. Mas só consegui fazer 4. A minha agitação e loucura interna aflorou e aumentou nos primeiros dias e meus fantasmas e demônios secretos e recônditos apareceram, me confrontaram e dominaram.

Em sonhos eu via Val em plena guerra, disparos de todos os lados, tentando escapar do cerco das tropas inimigas, se arrastando pela terra úmida, pulando sobre a correnteza de um córrego na escuridão da noite para escapar.

Pullahari era um mosteiro quase inacessível na montanha onde tínhamos de subir a pé.

Já na subida encontrei o primeiro obstáculo, externo, uma manada de búfalos me atacou e tive de me refugiar numa árvore onde fui cercado pelos animais que não sei por que me olhavam com ódio e urravam... 

Fiquei ali até que apareceu um garotinho muito pequenino que devia de ter uns doze anos e era o pastor da manada e com um pedacinho insignificante de vara os conduziu ladeira abaixo.

 Eu já tinha estado em Pullahari anteriormente. Da primeira vez os monges me deram um saquinho com cinzas dos restos mortais de Jangon Kongtrul Rinpochê para jogar no grande Rio. Foi o que fiz, mais tarde. No meu retiro, na solidão, e no silêncio daquela cela, eu me lembrei daquelas cinzas e de seu significado.

Eu não devia de ter ido a Pullahari.

Aquele mosteiro acendeu em mim a angústia de ter perdido a única mulher que amei, e que me abandonou.

 No dia da partida, o Khenpo me recomendou o Lama Tenpa em Boudanath que poderia me orientar no que deveria fazer.

 O Lama Tenpa me recebeu e me disse:

 - Talvez você nunca mais a veja, respondeu ele, depois de fazer a previsão, jogando o Mô.

- Não volte lá, continuou. Sua vida corre perigo. Seus inimigos o esperam, armados.

 Fiquei agradecido, fiz um oferecimento, que ele respondeu com uma pequena reza. E disse que ia rezar para que eu encontrasse nova companheira. 

Saí dali menos confuso. Tentei relaxar. Assisti a um grande Puja no mosteiro Dharlam, e voltei para a França, onde me aguardavam encomendas de Madame Adele, para quem fiz um luxuoso vestido de rainha das Amazonas.

 Devolvi o apartamento. Fiquei morando novamente no Hotel Petit Louvre, para diminuir a solidão, a lembrança, a depressão.

Perto havia a loja de comunistas soviéticos, onde comprava vodka. Quase ao lado, um restaurante libanês, muito bom; na entrada vinha uma grande salada verde. Ao lado, uma loja de queijos, grande variedade. Aquele Hotel era a minha casa. Aos domingos, uma feira debaixo do Duplex, onde se comprava de tudo, até discos usados. Eu tinha tudo ali. Poderia ser feliz, sozinho.

Um dia aluguei um apartamento numa casinha em Marlenheim, na place du Maréchal Leclerc, onde planejava ficar recolhido. Fiquei algum tempo ali.

De manhã saía para beber um café com croissant, um pedaço de camembert, na pequena padaria quase em frente, na mesma praça. Depois saía para uma caminhada pelos arredores, pois a senhora estava arrumando a casa. Ia quase sempre até um pequeno mercado, onde me abastecia e comprava meu almoço já pronto. Voltava quase na hora do almoço, lia um pouco depois, dormia e ouvia música. À noite saía até um bar rua Gal. De Gaule, onde bebia uma taça de vinho e olhava os carros que passavam. Às vezes voltava tarde, e ia dormir ao som daquele silêncio.

Raramente ia a Strasbourg, de ônibus, que já me parecia uma cidade grande demais. Às vezes ia a Kuttolsheim, onde conhecia um centro budista.

Desenhava e pintava umas aquarelas.

Quando suas férias acabaram, voltei para Paris e retomei meus trabalhos na Maison Riviere.

 

E me chega a notícia de que Val tinha sido vista em Manaus.

Fiquei muito tempo assim... Alguém dizia que era ela, outro dizia que não. Havia várias notícias vagas.

Mas se ela quisesse saber de mim, ela saberia a quem se dirigir.

Não. Eu não queria mais vê-la. Estava curado dela.

Continuei tocando a minha vida e meu curso na Escola. Eu tinha inaugurado a “moda indígena”. Fazia agora uma série de enfeites indígenas, colares para senhoras. Eram projetos de joias. Inaugurei, na Europa, a moda amazônica.

E não entrei em desespero por notícias de Val. Estava cansado daquilo.

Mandei recado para os amigos:

- Se Val estiver aí e quiser falar comigo, me avisem.

E era só.

Eu tinha de tocar a minha vida solitária. Do ponto de vista profissional, tudo ia bem. Tinha permissão do governo francês para trabalhar, e pagava os impostos. O mundo seguia o seu rumo... Por que tinha de ficar desesperado?

Comecei a procurar companhia, novas amizades, apoio. Passei a frequentar lugares onde as pessoas iam encontrar e fazer novas relações. Mas não queria mais ninguém.

O efeito imediato das notícias de que Val tinha sido vista em Manaus foi que passei a sonhar com ela.

Não eram sonhos claros, inteligíveis, mas pedaços de sonhos desconexos, mas eram bons, que me davam felicidade.

Val aparecia como uma jovem que me ajudava, e principalmente em uma espécie de viagem.

Primeiramente, ela surgia em relação a uma certa viagem de trem que eu tentava fazer. Depois, veio junto a um sonho em que eu preparava duas malas para viajar, e já estava atrasado, e podia perder o vôo...

Val nos meus sonhos era um vulto difuso, indefinido, mas eu sentia que era ela.

Que viagem seria aquela? Que partida?

Talvez fosse minha morte, talvez prenunciasse a morte...

Mas Val, nos sonhos, era a protetora.

E eu tentava não pensar nela, tentava esquecê-la.

Enquanto isso, não sentia solidão. Nem tristeza.

 

Entretanto, vieram notícias de que Val agora estava casada com outro homem, o dono de um barco, e que vivia com ele a bordo.

Aquilo a princípio me afetou. Senti ciúme. Como ela podia ter-se unido a outro? Depois me enchi de apreensões. Como ela podia expor-se assim, depois de ter vivido comigo tantos anos?

Eu comecei a temer por sua vida, pois ela podia ser presa e, uma vez presa, torturada até à morte para delatar os outros membros de sua organização.

Eu nada sabia, a mim nada me tinha dito. A única coisa que eu sei que ela sabia era onde estava o cemitério do exército inimigo no meio da floresta.

Eu nada podia fazer para protegê-la. Afinal eu não era responsável por tudo, por colocar sua vida em risco.

Assim, mandei mensagens para membros da organização, e pedi para tirá-la daquela situação.

A princípio os companheiros responderam com o indicativo de raptá-la a bordo.

Eu disse para não fazer aquilo. Val era experta e podia defender-se. Ela era rápida e perigosa, sabia contra-atacar de modo fulminante.

Temi por sua vida novamente.

Os companheiros tinham de preveni-la, apenas.

Então, encarregaram a companheira Geralda de entrar em contato com ela.

Geralda viajou no barco onde Val morava com seu novo namorado e no meio da viagem aproximou-se dela em segredo e alertou-a do perigo.

Val respondeu que precisava falar comigo.

Mas, no meio da noite, desapareceu.

Procuram-na muito. Disseram que ela tinha caído na água e morrido.

Mas eu sabia que ela tinha pulado para fora do barco, que tinha sumido no meio da floresta.

  Um mês depois recebi a mensagem de que Val estava escondida em Manaus e que tinha algo para mim. Mas eu não podia atendê-la, não podia expor-me. Nem tinha sua habilidade de ficar invisível entre as gentes.

Val me fez saber que resgatou dinheiro do que estava escondido no centro da floresta. Fiz chegar a ela a notícia de que eu não podia ir, e que ela tinha de desaparecer de Manaus.

Ela disse que sim, e membros de nossa organização conseguiram enviar-me dólares, numa operação complicada através do banco de Madame Adele.

Val compreendeu o risco que corria.

- Se te pegam vão torturar-te até a morte para saber onde os outros estão, disse-lhe eu, pelo telefone.

Ela entendeu.

E desapareceu sem deixar rastro.  Não se despediu, nem revelou seu paradeiro.

Meses depois, passei minhas férias na Austrália, para onde fui a fim de receber um ensinamento de meu Guru. Fiquei ali quase dois meses.

Quando voltei – movido por um desejo louco de superar-me, e para ver até onde ia a capacidade de Madame Adele de gastar – quando voltei fiz o trabalho mais luxuoso até então.

Era um belo vestido negro com bordados discretos de fios de ouro em forma de secretos pavões. Havia centenas de pequenas pedras preciosas espalhadas, esmeraldas, rubis e diamantes. A fazenda exclusiva para a roupa, e escolhida por mim, era negra cor de petróleo. Tinha vários tons de negro. Simples, mas perfeito. Sua beleza residia na simplicidade, mas era uma joia.

Havia numa capa estilizada que cobria o rosto e o corpo, com pequenos pavões bordados um a um. Cristais, esmeraldas e diamantes.

Aquilo custou uma fortuna. Projetei sapatos muito leves e confortáveis feitos pelo melhor sapateiro de Paris, com a mesma fazenda. 

 Tudo deslumbrante, que alcançou grande sucesso na foto publicada em uma revista de moda sem o meu nome (“O costureiro não foi revelado”, dizia). Madame Adele saía de seu Rolls-Royce na foto.

Era algo milionário, caríssimo, eu me excedi.

No fim, esperava que ela me despedisse quando lhe apresentei a conta, mas em vez disso ela me chamou e me pediu exclusividade com uma proposta milionária de pagar-me mensalmente através de seu próprio banco.

Aceitei e fiz a exigência de ter a nacionalidade do seu país.

Ela aceitou.

Eu lhe disse:

- Primeiro tenho que falar com o pessoal da Maison.

- Não, senhor, disse-me ela. Isso faço eu.

Acrescentei:

- Nada posso fazer sem aquelas costureiras, bordadeiras etc. Elas são as minhas mãos preciosas.

 

 M. Adele me perguntou se eu queria minha própria casa de moda. Eu ia dizer que não, mas hesitei. Lembrei-me de que ela era minha cliente única.

Assim aceitei.

Financiado por ela, abri uma pequena loja num prédio de dois andares. O prédio pertencia ao seu banco. Em cima fiz um pequeno apartamento para onde me mudei e um espaço para um atelier.

Abri a loja na época do Natal. Chamava-se Casa Amazonas.

Comecei a vender joias trazidas de Katmandhu  e contratei duas funcionárias, uma costureira e uma bordadeira.

Eu tinha tudo de que precisava e comecei a fazer para clientes eventuais vestidos que eram acabados na Maison Riviere. Vendendo bem, graças a M. Adele, muito bem relacionada com a alta sociedade europeia e que me recomendava.

Não, não há nada; não sei mesmo há quanto tempo estou aqui, perdi a consciência do tempo, da vida, do espaço, e nessa rede em que vivo, nessa letargia em que vegeto, nessa calma apática e tristeza, no meio dessas imensas árvores, no entrecortar dos gritos de estranhos pássaros silvestres que silvam fortemente em minha frente o lago verde se abre, se estende, se alarga, sinistro, sem nome, imóvel, enorme, trágico, no ar, naquele silêncio morno, naquele calor úmido, naquele mormaço tardio, mortal, à espera da morte, a espera da minha morte.

 

Na minha frente vejo a Val, silenciosa, misteriosa, amante, possível inimiga.

Não sei por que os guerreiros indígenas ordenaram que ficasse aqui. 

Depois voltaram e ela conversou com eles, que se foram, desapareceram sem olhar para mim.

 

Eu vejo Val na minha frente, pescando com uma lança.

Por que está aqui?

Talvez para alertar-me da aproximação do exército inimigo.

Mas para que aqueles índios?

Eu já não penso, espero a morte, estou fraco.

Será que virão os inimigos que espero?

Talvez aqueles mesmos índios estejam planejando matar-me.

Talvez sejam eles o inimigo.

Mas minha falta de reação, minha apatia, minha indiferença, e Val permanece em paz.

E calma.

Nem fala comigo.

Assim vivia.

Para ocupar-me nos dias em que não aparecia ninguém, voltei a fazer fotografia.

Comecei a fotografar Paris, os mendigos, manequins, coloquei umas bonecas velhas, fotografei o atelier espelhado no olho de vidro de uma boneca.

Um dia a negra Bahati apareceu. Passei a fazer fotografia com ela nua.

Fotografei corpos nus masculinos e femininos em copos de vinho espelhando bonecas velhas, olhos de vidro espelhando vultos esfumaçados, um mundo de coisas espelhadas que se abriu. 

Pediram-me um vestido de noiva. Criei cinco véus das cinco cores, bordados de flores em ouro, prata e pedraria, e uma tiara espetacular.

Eu estava cada vez mais animado com a minha “profissão”, e quando me perguntavam há quanto tempo eu era estilista respondia “desde menino”, o que era verdadeiro, pois era o amadurecimento de tudo aquilo que aprendi com minha mãe.

Passei a criar joias e relógios, relógios amazônicos, exibindo folhas, pele de onça, rosto de pantera no mostrador etc. Joias com inspiração indígena, cocares de ouro e brilhantes para usar como golas etc. Joias que venderam bem.

O mundo da moda naquela época era para quem inventasse, as minhas joias eram únicas, quem fosse o possuidor de um dos meus relógios saberia que ninguém teria outro igual em todo mundo. Fui ao fabricante suíço para realizar minhas modificações no estilo, na cor, no fundo com pedrarias, e minha assinatura.

Depois criei uma grande série de caixinhas de música, de prata com porcelana. Foram um sucesso e vendi todas. Os fabricantes já me conheciam e eu adaptei relógios nas caixas de música e em porta-joias. Eram objetos únicos.

A seguir fabriquei jarros e móveis. Meus jarros e potes seguiam o padrão amazônico, com motivos de lagos e rios que eu desenhava.

Depois revelei minhas fotos nos jarros, deixando as distorções propositais.

Esses objetos decorativos se revelaram muito rentáveis, pois atendiam ao luxo daquelas casas elegantes. Não eram obras de arte, eu tinha consciência disso. Mas me faziam feliz e me rendiam um bom dinheiro.

Depois eu desenhei óculos, retos, largos e de várias cores. Esses modelos eu vendi para o fabricante de óculos e foi um grande negócio.

Os fabricantes me pediram depois uma nova coleção, e eu lhes dei uma nova série de óculos, coloridos e alegres para a nova temporada.

 Recebi a encomenda de uma coleção primavera-verão e eu desenhei. Era a primeira vez que eu aceitava essa encomenda. Trabalhei meses e depois assisti ao desfile, anônimo.

Foi consagrador, pois eu era diferente e logo encontrei meu lugar na chamada alta costura.

Não era no primeiro time, mas era.

No fim da apresentação, apareci rapidamente para agradecer os aplausos.

Naquela noite sonhei com meu pai, coisa rara. Meu pai aparecia como um homem quase negro e me perguntava por que eu não queria fazer aquilo, e ganhar dinheiro. Ele não perguntava com palavras, mas com um gesto, um resmungo.  “E então?” parecia dizer ele. Aí eu me lembrei de meu pai tocando piano em Itacoatiara, no interior do Amazonas, sozinho na cidade, no único piano da cidade. Tocava aquela “Sonata ao Luar” de Beethoven, e lágrimas escorreram de meus olhos ao sabor da lembrança de meu pai já morto, no seu piano, tão longe, tão distante, no morto espaço de minha vida passada. Meu pai era um bom pianista. Aprendeu música em Strasbourg, onde cresceu, perto daquela catedral. Toda manhã acordava ao som dos sinos da Catedral. 

Depois daquela coleção, caí no esquecimento, mas continuei mesmo assim desenhando para diferentes casas, graças ao sonho de meu pai, profético, de apoio, como dizia “vá em frente”.


Depois resolvi fazer mais fotografia.  Era uma diversão. Eu sempre aprendia a cada foto. Fiz um estudo de luz e sombra em preto e branco e em cor. Fotografei corpos e objetos. Ao som das sonatas de Beethoven. Minhas fotos, reunidas, eram a “Sonata ao luar”.

Mas o mundo girava rápido. Soube que a ditadura brasileira tinha prendido um companheiro nosso na Espanha e eu me apavorei.

Voltei a morar em diferentes hotéis por motivo de segurança, ou porque eu me sentia sempre perseguido. E tinha sempre uma boa quantidade de dinheiro vivo comigo para o caso da fuga. Talvez fosse paranoia, mas as notícias da repressão eram terríveis. Eu não viajava mais, sempre ficava em Paris, mudando de lugar quase escondido. E só.

Depois, fechei minha loja e desapareci.

Conheci a ponta dos extremos. Dos cadáveres semienterrados no alto da floresta, cujas roupas vesti, ao luxo europeu. Ali estava eu. Era esse o mistério de minha concepção de mundo e de arte. Desenhei roupas para rainhas e para índias. O meu mundo era o caos.

Pretendia ir para os Himalaias, mas um devastador terremoto com milhares de mortos me deixou paralisado. Era um mundo em guerra. Eu me via em busca de segurança, num mundo inseguro, móvel, tinha pesadelos em que era caçado por tropas inimigas. Eu só via destruição e morte por toda parte. Tudo era um horror, tudo era a catástrofe.

 Reencontrei Helene Reval no Metro. Eu continuava e mantinha algumas encomendas e continuei desenhando para me ocupar. Eu não podia parar, minha “vida” era aquilo. Era o que eu fazia com felicidade, com facilidade. Continuava morando em hotéis baratos, o que era um conforto para quem era só. Não frequentava a vida noturna, não ia a reuniões, nada. Vivia escondido, recluso. Desenhava no hotel, sobre a cama. Só saía para o almoço, voltava no fim da tarde, me trancava para trabalhar, até tarde. Não tinha amigos, não frequentava ninguém.

Apesar de tudo, era feliz. Às vezes me punha a andar sozinho pelos campos e montanhas fora de Paris, pernoitava em pousadas.

Fugindo do inverno fui para a Denia, na Espanha, onde aluguei um quarto numa casa na montanha em frente ao mar. Era um lugar alto, chamado Predreger. A vista era magnífica. Chegar em Denia era um tanto complicado, mas valeu, de Paris a Alicante e de lá num ônibus para Denia. Descia a pé e voltava de táxi para subir a montanha. Mas valeu. O mundo, lá de cima, era imenso. Eu podia morar ali pelo resto da vida.  Todos os dias, caminhava pela estrada, ia até a praia, onde era bom sentir o vento da vida livre. Em casa, desenhava. O desenho, para mim, era um prazer. Cidade pequena, quase não se via ninguém nas ruas. Poucos restaurantes, poucas lojas. Comprei um aparelho de som, discos.

Mas voltei a Paris porque uma freguesa me encomendou um vestido. Eu precisava de dinheiro. Em Paris, num hotel, no apartamento de fundos, térreo, tinha um jardim triste, escuro.

Foi quando reencontrei Helene Reval, no Metrô. Mas ela estava outra, mergulhada em funda, forte depressão.

No fim suicidou-se em sua casa, ingerindo uma overdose de remédio para dormir.

Senti-me culpado.

Eu não esperava aquilo. Como um choque. Foi como se eu a tivesse matado. 

 Nas férias fui para Bournemouth. Lá aluguei um quarto numa casa que ficava longe de tudo, ao lado de um bosque cuja travessia me apavorava por escura, cheia de lama e onde havia, soltos, cães de caça que eu jurava que me iam caçar. Eram cães dos moradores ingleses das adjacências que pela manhã os soltavam. Eu temia um ataque, eu era a caça.

O dono da casa era um jovem com quem estabeleci logo uma forte relação de amizade.

- Não tenha medo, me disse uma amiga, são cães civilizados... vai ver que nem latem...

Eu não acreditava e, enquanto estava lá, um cão atacou uma senhora inglesa. Quase a matou.

Para piorar minha estada, caiu naquele ano as piores chuvas dos últimos 50 anos...

 Mesmo assim minha permanência na Art University foi excelente.

Nos tempos livres andava pelas praias, explorava os segredos, os portos de luxo, grandes barcos, mansões reais.

Lá escrevi uma série de poemas que intitulei de “Poemas de Bournemouth”.

Foi quando recebi a notícia de que tinha uma filha... uma filha minha, de quando eu era bem jovem, quase adolescente.

Foi um choque.

Seu nome era Jatir.

As notícias, confusas e contraditórias, diziam que já era uma jovem crescida e que queria muito conhecer o pai.

Mas me alertaram para que eu não aparecesse no Brasil, pois continuava sendo caçado pela polícia política brasileira.

- Não venha, disse-me um companheiro. Vamos tratar de tudo.

- Obrigado, eu lhe disse, ainda surpreso.

- Quer que a mandemos para você?

- Sem a mãe? Indaguei.

- A mãe já a abandonou há muito tempo, Jatir foi criada por uma família de classe média.

Eu continuava confuso, sem saber o que fazer.

- Como eu vou saber que é minha filha? perguntei.

- Se você a vir, logo saberá, respondeu o outro.

E assim, depois de algum tempo, com problemas e procedimentos, uma desconhecida a trouxe para Paris, e a primeira coisa que vi, que senti foi que era minha filha, sem nenhuma dúvida.

Já tinha uns dezenove anos, morena e bela, com um sorriso no rosto e me abraçou e beijou.

Eu a amei de imediato. Sem o menor cuidado ficou comigo, confiante, segurando a minha mão.

Irradiava felicidade de estar comigo. Eu nunca tinha sentido aquilo antes. Desde logo vi que nossa ligação era forte e não foi difícil reconhecê-la como filha junto às autoridades francesas.

Jatir começou a aprender francês.

Sua educação tinha de ser especial. Eu me dediquei integralmente à sua educação e me recusava a interná-la num colégio, pois ela não saía de perto de mim.

Contratei uma preceptora. Ela não gostou.

- Você me ensina, disse ela.

Madame Adele também se afeiçoou a ele e lhe dava presentes, foi sua madrinha, o que me dava certa segurança de que, se me acontecesse algo, ela a tomaria sob sua proteção.

Mas Jatir sabia defender-se. Tinha desenvolvido um sentido de sobrevivência.

Um dia, perguntou como tinha sido minha participação na guerrilha. Eu lhe disse que não falava disso para ninguém.

Finalmente consegui uma escola de alunos especiais que falavam várias línguas. Eram jovens de diversas nacionalidades, filhos de forasteiros que viviam em Paris. Havia russos, africanos, hispano-americanos, indianos etc. Ali as aulas eram livres, cada aluno assistia ao que queria, e podia, e havia várias atividades e laboratórios.

Jatir gostou.

Ela precisava socializar-se. Naquele colégio misto havia aulas de música, dança, línguas.

Jatir progredia. E ficava mais bela.



 Comecei a fotografar Jatir. Fiz dela o meu principal modelo fotográfico. O estudo começava por Jatir em várias atitudes.

Ao longo do livro, pois seria um livro, as fotos iam do preto e branco até a cor.

Levei um ano fazendo isso, pois não tinha pressa.

Jatir gostava e era bela e exótica, selvagem e animal, ingênua e pura, narcisista e erótica, Jatir era tudo.

Ela era realmente elegante, sabia andar, e tinha um lado animal que lembrava Val.

Mas o projeto não saiu do papel.

Então, Madame Adele nos convidou para uma recepção em sua mansão em Biarritz. Fomos para um pequeno hotel, às custas de Adele.

Eu nunca tinha ido àquele hotel, frente ao mar, hotel muito velho, com um salão cheio de espelhos e lustres de cristal. Os garçons também velhos nos tratavam com muita gentileza, enquanto passeávamos pelos jardins, jogávamos na sala de bilhar, ficávamos na varanda, no restaurante e, às vezes, caminhávamos pela estrada até uma pequena praia, onde pegávamos sol. Havia poucos hóspedes ali. Lugar de repouso, de silêncio, de contemplação.

- Quantos dias você quer ficar aqui? – perguntei a Jatir.

- Não sei, respondeu ela. Poderíamos morar aqui...

- Você acha?

- Sim, respondeu, preguiçosamente. Tem tudo aqui que eu gosto, sol, mar, floresta...

O horizonte se estendia ao infinito. Eu contemplava o mar e sonhava. Gaivotas voavam em direção ao sol. Alguns barcos. Velas brancas.

Voltamos para o quarto, onde adormeci.

No dia seguinte, fomos à mansão de M. Adele. Ela queria dois novos vestidos, e um casaco. Eu discuti com ela sobre o que ela queria, com a prancheta nas mãos. De vez em quando ela sorria para Jatir, que olhava tudo. Por fim, ela aprovou e renovou os convites para a recepção. Ela queria hospedar-nos em sua casa, mas preferimos o hotel.

- Por que não ficam aqui? – perguntou ela.

- Por privacidade.

- Então, vocês podem usar esta casa quando estiver vazia. Às vezes passa o ano todo sem ninguém, além dos empregados...

- Ótimo, aceitamos a boa oferta, respondi.

E ela foi chamando o mordomo para dar a ele logo essas ordens...

- Essas pessoas vão usar a casa na minha ausência, Franz!

 

Mas M. Adele adoeceu, ficou hospitalizada na França e retirou-se ao seu apartamento em Paris, onde eu a visitava.

Perdi minha principal cliente.

- Quando vocês vão para Biarritz? – um dia ela perguntou, do leito.

E fomos nós.

O mordomo Franz nos esperava na estação com um dos carros antigos da patroa, mas em estado de novo.

Jatir não gostou da casa:

- Muito triste, sinistra, ela disse.

Havia algo no ar que fazia dela um espaço maldito. Por isso, contratei um padre para abençoá-la. Aos empregados disse que o padre estava rezando pela saúde da patroa e eles aceitaram. No fim, foi rezada uma missa no oratório antigo de M. Adele.

Franz, o mordomo, nos perguntou um dia:

- Quando os senhores vão usar a piscina? Avise-me com antecedência.

E assim resolvemos experimentar.

Como Jatir adorou o mar de Biarritz, alugamos um barco e assim passamos a navegar por ali, sem ir muito longe.

Eu descansava à tarde até ouvir a voz de Franz:

- O jantar está servido.

Descíamos para o jantar, felizes, e aos poucos aquela velha casa ganhou um pouco de vida e alegria.

Era uma casa grande, em frente ao jardim público, com salas e vários quartos, mas nós nos limitávamos aos nossos aposentos perto da escadaria e às salas e jardins do primeiro piso. O teto muito alto, lustres antigos de cristais de luzes fracas e distantes. Os móveis com uma elegância discreta e os quadros de paisagens francesas do século anterior.

Bonitos e bem cuidados os jardins. Descobrimos a piscina suja que Franz mandou limpar para nós e disse:

- Essa piscina nunca é usada...

Mas nós usamos. Quase diariamente. À noite íamos aos bares da vizinhança beber uma cerveja, sempre excelente. Assim nossa vida era boa, e lá ficamos por vários meses. A grande casa era só nossa.


Mas depois que d. Adele morreu nos deixou uma pensão em dinheiro mensal e um apartamento em Paris, além da ordem expressa de que eu e Jatir tínhamos o direito de usar a sua casa em Biarritz sempre que quiséssemos. Além disso, nos deixou sua grande coleção de vestidos, capas e sapatos... uma fortuna.

A Maison Riviere pouco precisava de mim, a grande moda entrava em decadência, assim mudei-me para Biarritz, com minha filha.

Ali ainda era possível encontrar clientes milionárias turistas ou que ali moravam.

Depois de alguns anos, desde que a situação política mudou, pensamos, Jatir e eu, em voltar para o Rio de Janeiro.

Mas eu já não tinha o apartamento, sequestrado pela repressão. Meus amigos estavam mortos, ou desaparecidos. A vida no Rio de Janeiro, mudada. Não tinha emprego, o mundo mudou.

Por isso continuamos em Biarritz, na casa da falecida amiga M. Adele, casa nunca usada por seus herdeiros, à nossa disposição.

 

 

 

Uma senhora americana me procurou indicada pelo gerente de um dos hotéis onde eu tinha postado meu endereço.

Queria um vestido e já trazia nas mãos o corte da fazenda.

Tirei as medidas, cobrei caro pelo trabalho, chamei duas costureiras minhas conhecidas e me pus a trabalhar.

Eu tinha 24 horas mas no dia seguinte o vestido estava pronto porque usei uns apliques de M. Adele que tinha trazido comigo com fios de ouro e pequeninas pérolas e cristais. Eu tinha todos vestidos de M. Adele comigo e aquilo valia uma fortuna.

A roupa ficou deslumbrante e minha cliente se surpreendeu. Não esperava tanto.

Ela era uma mulher magra, rosto um pouco sofrido, pálida mas muito simpática. Nós nos demos muito bem.

Mary tinha herdado de seu pai um conglomerado de indústrias e patentes, mas vivia reclusa em Walden, ao Sul de Nova Iorque.

Cuidei do seu penteado, da maquilagem e dos sapatos.

Mary Simpson tinha sido convidada para uma festa no palacete de alguém ali mesmo em Biarritz, e como não trazia nenhuma roupa apropriada na mala me procurou.

Mary na realidade só usava calças compridas e tênis naquela viagem. Mas estava radiante de se ver novamente bela, elegante, e se mostrou muito agradecida.

Eu não fui à festa, mas no dia seguinte Mary me telefonou convidando-me para almoçar. Fomos, eu e Jatir.

O almoço foi muito divertido, bebemos champanhe e nos conhecemos melhor.

Falei de minha vida, e ela me contou seus fracassados casamentos. Era uma mulher de  sessenta anos e as marcas de sua vida estavam estampadas na face de sua solidão. Não tinha filhos. Todos os homens que conhecera eram interessados em sua fortuna.

Mary me convidou para trabalhar com ela nos Estados Unidos e eu fiquei de lhe dar uma resposta.

Vi logo que uma bela roupa logo muda o humor de uma mulher.

 

Não fui logo para os Estados Unidos, mas passei a fazer roupas para Mary periodicamente. E ela me incluiu no seu círculo de amizade, que era grande, e voltei a ter clientes ricas. Frequentemente recebia pedidos, e em Walden abri um atelier temporário e depois em Paris.

Jatir gostou dos Estados Unidos. Logo arrumou um namorado americano, Frank, e se foi para Los Angeles.

Depois, também fui para lá.

Jatir e Frank moravam na casa de um amigo ausente, num bairro nobre, em West Hollywood, perto do Sunset Boulevard. A casa tinha uma ampla sala, dois quartos, sala de almoço, boa cozinha, lavanderia e até um pequeno quintal. O dono, amigo de Frank, diretor de uma multinacional, morava na Argentina. Frank ficava ali para conservar a casa longe dos assaltos.

Minha estada em Los Angeles foi muito boa.

Na realidade, é uma cidade para o prazer e para as artes.

Íamos a Malibu e Santa Mônica, onde Frank tinha amigos. Ali, mesmo que você não seja rico, há muita coisa a fazer e ver.

Eu não busquei, mas acabei achando emprego em uma loja de moda. Eu tinha um currículo a mostrar, mas foi por acaso que entrei naquela casa e em conversa com o gerente fui facilmente introduzido no mundo da moda de Hollywood.

Na realidade, as famosas atrizes eram muito mal vestidas, vestiam-se de um rico mal-gosto.

E eu, formado na alta costura parisiense, não tive dificuldade nenhuma em trabalhar ali.  

Não era famoso, mas fazia melhor. Cobrava caro, caríssimo, atento aos detalhes, aos bordados e às rendas.

Depois de alguns anos morando em L.A., Jatir separou-se do namorado, a situação política brasileira mudou e  Jatir e eu resolvemos voltar a morar no interior do Amazonas.

 

Eu não sei há quanto tempo voltei para cá, perdi a consciência da minha vida e do espaço, nessa letargia com que vivo, de uma felicidade calma, de apática tristeza, no meio dessas imensas árvores, por onde os verdes pássaros passam com seus gritos, e os silvestres silvam fortemente.

Em minha frente o lago verde se estende largo e sinistro, sem nome, onde minha filha pesca, imóvel.

Ela é uma estátua imóvel, lança parada, no ar parado, no silêncio morno, no calor úmido, no mormaço da tarde.

Talvez eu esteja aqui há muitos anos.

Talvez não.

O mundo desapareceu, e se mudou, e se fechou. O tempo é morto, as lembranças mortas, o espaço morto, o verde incompreensível.

Por que de nada me lembro? Por que de nada me não quero lembrar?

Ouço a espera do porvir, a espera final. Estou velho e débil, pouco me ausento da rede.

Nesse momento o som de arco perfura a água, e eu sei que Jatir pesca e nem me volto para vê-la, silenciosa, atenta, misteriosa e meiga.

Mas vieram alguns guerreiros à procura de Val, não a encontraram e partiram sem nenhuma frase nem gesto.

 

Desapareceram.

E eu cansado me deitei na rede onde esperava morrer contemplando a outra margem daquele lago.

 

No dia seguinte de manhã liguei o motor do barco e partimos para Manaus de onde pegamos um vôo para o apartamento de Paris, presente de Madame Adele. Eu e Jatir.